Por Camila Oliveira
A autora Tomi Adeyemi nasceu nos EUA e é filha de nigerianos e apesar da naturalidade de seus pais a inspiração para escrever a história, que tem como como base a cultura iorubá, veio após receber uma bolsa para estudar cultura africana em Salvador Bahia. A partir desse estudo ela começou a desenvolver a trilogia O legado de Orïsha, tendo como primeiro livro Filhos de Sangue e Osso. A história se passa no reino fictício de Orïsha, um país com toda a sua população preta. Ao ler o primeiro livro não sabemos se existem pessoas brancas dentro desse universo, mas sabemos que Orïsha não é o único país. Mas apesar de não existirem personagens brancos é possível perceber as hierarquias de cores entre os negros mais e menos retintos1 . Nesse contexto onde (aparentemente) a brutalidade do colonialismo e as ideologias brancas não aconteceram e a monarquia tirânica local toma lugar na posição social de opressão. Uma sociedade demarcada e dividida socialmente entre majis e não majis, nesse cenário fantasioso o que diferencia as pessoas não é cor, mas a magia. Após a Ofensiva, período onde os majis dominavam o seus poderes foram mortos, Orïsha instaurou um ódio ainda maior aos maji, que são facilmente reconhecidos pelos seus cabelos brancos. “Eles [guardas] construíram este mundo para você [Inan], construíram para amar você. Eles nunca te xingaram nas nas ruas, nunca derrubaram as portas da sua casa. Não arrastaram sua mãe pelo pescoço e a enforcaram na frente de todo o mundo” p. 267 A narrativa do livro é dividida entre três personagens Zélie, Amari e Inan. Dos três Inan é o personagem que tem uma construção que mais surpreende e nos faz refletir sobre pressões sociais, para ele o lema transmitido desde pequeno pelo seu pai “O dever antes do eu” é uma verdade absoluta incontestável, o seu dever com o Estado, com a manutenção da monarquia deve vir antes do que ele considera ser importante, mesmo que não seja a melhor decisão. Por terem sido criados de formas tão diferente os diálogos entre Inan e Zélie são, na minha opinião, os melhores do livro. “Seu povo, seus guardas… eles não passam de assassinos, estupradores e ladrões. A única diferença entre eles e os criminosos são os uniformes que usam” p. 268 Zélie é uma guerreira maji mas que não consegue acessar o seu poder que sabe como é lidar com todos os problemas que a ofensiva trouxe. Ela é a personagem principal, fio condutor da história, desde sua primeira aparição já é descrita como uma personagem que faria de tudo para salvar a magia e a todos com quem se importa. Ela tem um irmão (Tzain) que a acompanha na trajetória para salvar a magia. Já Amari (irmã de Inan) a princesa de Orïsha se transforma durante a história começa como uma princesa que é sufocada pela pressão familiar para ser a princesa perfeita e após um acontecimento se vê necessitada a lutar para tornar o seu reino um lugar melhor. Assim como seu irmão também sofreu com a coação de seu pai que sempre a forçava a treinar e gritava incansavelmente “Golpeie Amari” independentemente de quem era seu opositor. Mas diferente de seu irmão ela possuía uma dama de companhia maji (Binta) que a influenciava a ser melhor “Coragem, Amari” e foi por Binta que Amari se rebela contra seu pai se tornado a leonaria que deveria ser. As duas personagens se tornam potência dentro da história e partindo da explicação de ialodê de Jurema Werneck Zélie e Amari podem ser consideradas como tal, pois "Se utilizarmos a ialodê como chave de leitura, como metáfora de liderança e auto-governo, verificaremos a capacidade de agenciamento embutida nas formas com que diferentes mulheres negras disputaram e disputam participação em diferentes momentos das lutas políticas. A ialodê reafirma e valoriza a presença e a ação das mulheres individual e coletivamente nos espaços públicos, sua capacidade de liderança, de ação política. Valoriza também as características individuais que Oxum e Nanã carreiam: a capacidade de enfrentar ou contornar obstáculos, a negociação, a luta e sua força de vontade para realizar aquilo a que se propõem e que outras mulheres negras e a população negra esperam que façam, contra as variadas formas de violência, estereótipos e desqualificação que lhes são contrapostos" (WERNECK, p. 15, 2010). Outra personagem feminina que merece destaque mesmo não sendo a principal é Mamá Agba e pode ser entendida como a personificação de Nanã na história levando em consideração a descrição de Jurema Werneck (2010) de Nanã como uma, “(...) mulher idosa, está ligada também à morte, ao passado e à preservação da tradição” p. 12. Mamá Agba é exatamente assim2 , através dela que é transmitido todas as histórias e conhecimentos antigos dos majis através da oralidade. Revelando a força do orixás Nossos Passos vêm de longe mostra que essa cultura oral sobreviveu durante anos a um processo de colonização e ainda (re)existe ao racismo religioso se mantendo viva. Uma aspecto muito interessante do livro e que o enriquece é o não maniqueísmo dos personagens, eles são o que são por diversos motivos. Ainda que o rei e o princípe personifiquem a oposição de tudo o que Zélie luta, eles são bem desenvolvidos e construído mostrando que suas ações são fruto de outros acontecimentos anteriores. Jurema Werneck no início de seu artigo Nossos passos vêm de longe afirma que mulheres negras não existem e que só existem devido ao processo de colonialismo, porém ao longo do texto ela mesmo evidencia que as potência das mulheres negras são anteriores ao processo de colonização. Elas (re)existem a muito tempo e o livro Filhos de Sangue e Osso reafIrma a ideia da autora, que mesmo sem o processo de colonização mulheres negras são potência. Filhos de Sangue e não conta apenas uma história de fantasia e magia que destoa de todos os feitos até hoje, mas conta também com uma discussão política extremamente relevante como o abuso de poder da Monarquia, os limites da empatia3 , ancestralidade e religiosidade. “Não importa que eu entre em sua cabeça. Nunca vou entender toda a sua dor” p. 268 O trabalho da editora em criar um guia de pronúncia das palavras em iorubá, de continuar com os encantamentos escritos em iorubá deve ser elogiado. O segundo livro Children of Virtue and Vengeance (Filhos de Virtude e Vingança4 ) já tem previsão de ser lançado em dezembro de 2019 nos EUA e ainda não tem previsão de chegar ao Brasil. E com todo o sucesso do primeiro livro os direitos do livro foram comprados pela FOX e está sendo adaptado para o cinema, tendo como diretor confirmado Rick Famuyiwa e roteirista David Magee, porém ainda não há data de lançamento. “Não vou deixar sua ignorância silenciar minha dor” p. 268 Notas: [1] No livro todos os personagens são descritos como negros retintos, por exceção de um estrangeiro (negro de pele clara) que aparece nos últimos capítulos. [2] Apesar da Mamá Agba ser uma vidente irmã da divindade Ọrúnmìlà, ela se enquadra na figura de Nanã dada por Werneck. [3] Os limites da empatia nesse sentido não quer dizer com que ter ou não empatia, mas que mesmo exercendo o sentimento de empatia quem não sofre a opressão do outro não é capaz de sentir genuinamente o que ele sente. [4] Tradução livre feita pela autora da resenha. Referências: Autora: Tomi Adeyemi Editora: Fantasia Rocco Instagram da autora: @tomiadeyemi Link para acessar o pdf do livro: https://drive.google.com/file/d/0BzIKN8w9_sMRSHRybXk0bkctUEFfZW1pOTIyTUFoY21 TUVBZ/view?usp=sharing WERNECK, Jurema. Nossos Passos vêm de longe! Movimentos de mulheres negras e estratégias políticas contra o seximos e o racimo. Revista da ABPN, v. 1, n. 1 - mar-jun de 2010, pp. 8-17.
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Essa semana tem Samba Urgente! Não conhece? Já conhece e quer conhecer mais?
O Samba Urgente (S.U.) é um evento gratuito e cheio de amor que acontece mensalmente, aqui em Brasília, com a participação de grandes nomes do choro e do samba, como Marcio Marinho (cavaquinho), Vitor Angeleias (bandolim), André Costa (bateria) e Larissa Umaitá (percussão). O horário de início é sempre 21h e dura até 06h da manhã do dia seguinte, com muita música rolando. O projeto faz parte da busca pela ocupação da cidade e visa promover a diversidade, o respeito, a integração e a acessibilidade, além, claro, de muito samba. Assim, o S.U. é sempre gratuito, tenta se manter perto da rodoviária (ou disponibiliza ônibus gratuito para lá) e atento à boa convivência no espaço. Algumas medidas para isto são: a comunicação do evento é fortemente voltada pra defender o respeito, para reforçar que o espaço deve ser livre de homofobia, racismo e transfobia; a equipe de segurança é treinada para identificar situações de assédio e retirar o agressor da festa; na entrada, cada pessoa pode decidir por quem quer ser revistada - de modo a evitar qualquer constrangimento a pessoas trans ao tratá-las por outro gênero. De qualquer forma, tudo é feito de forma a garantir que as pessoas se sintam acolhidas e prontas pra aproveitar. Como indica o bordão distribuído em adesivos no evento, o espaço dá e pede: Mais Amor Urgente. Essa semana o S.U. vai acontecer no estacionamento do Outro Calaf, dia 16/11, sábado. A proposta desse fim de semana é homagear Jackson do Pandeiro, mesclando samba e forró. Além do grupo do Samba, vão participar a Silivestre Bass Band, que misturam sonoridades das fanfarras de New Orleans com sons tradicionais do sertão, e a DJ Pati Egito, que, conforme postagem do evento, tem "como inspiração primordial de seu trabalho o respeito pela ancestralidade e empoderamento e o fortalecimento de mulheres, negros e LGBTQIs", além de pesquisar ritmos tradicionais do Norte e Nordeste e os misturar com ritmos latinos, jamaicanos e caribenhos. O evento começa às 21h do sábado. Mas, como a entrada é gratuita e por ordem de chegada, é bom chegar cedo!! |
PET IndicaSemanalmente, indicamos filmes, músicas, livros, eventos culturais da cidade, entre outros, acompanhado de um texto autoral que explore o cunho sociológico, antropológico e/ou político da indicação. Histórico
August 2021
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