My Mad Fat Diary foi uma série de televisão do gênero comédia-dramática produzida pelo canal britânico E4 que teve sua estreia em janeiro de 2013 e encerramento em julho de 2015. Baseada no livro autobiográfico “My Fat, Mad Teenage Diary” de autoria de Rachel Earl, a série acompanha a protagonista de mesmo nome, interpretada por Sharon Rooney. Recém saída de um hospital psiquiátrico, a adolescente de 16 anos narra de maneira bem humorada todos os dilemas corriqueiros que perpassam essa fase da vida, tais quais sua complicada relação com a mãe e seus interesses amorosos. Ao mesmo tempo, Rae, como é apelidada, luta contra problemas psicológicos, dificuldades sociais e distúrbios alimentares.
O grande triunfo de My Mad Fat Diary reside, sobretudo, na responsabilidade e sensibilidade com a qual questões de profunda relevância social são abordadas ao longo de suas três temporadas. Temas como gordofobia, homofobia, xenofobia e saúde mental ganham a tela de forma crível e verossímil. A complexidade com a qual a protagonista é retratada chama atenção. Acompanhar sua jornada em um processo de cura não linear, marcado por altos e baixos, faz com que o telespectador mergulhe de cabeça na história da personagem e se torne quase impossível não se envolver e se identificar com pelo menos alguma das situações vividas em tela. Também cabe destacar o desenvolvimento de importantes personagens coadjuvantes como Chloe (Jodie Comer), melhor amiga de Rae, inicialmente apresentada como típico estereótipo de “mean girl” que gradativamente vai sendo desconstruído, e do terapeuta Kester (Ian Hart), trazendo relevância e humanidade à figura do psicólogo. Outro detalhe especial de My Mad Fat Diary é a sua ambientação. A série se passa no final dos anos 90 e consegue resgatar a época com exatidão por meio de uma direção de arte e figurino inspirados, além de uma trilha sonora que cumpre papel fundamental no desenrolar da trama, composta clássicos do britrock como Oasis, Blur, The Smiths e The Verve. A música escolhida para embalar a cena final, especificamente, é genial, e foi pessoalmente impossível não segurar as lágrimas assim que começaram a tocar seus primeiros acordes. A série foi definitivamente importante à minha trajetória e sempre que a reassisto, em uma nova fase de vida, se configura uma experiência diferente. O apego que sinto pelos personagens, a narrativa, a trilha sonora e todos os seus pequenos detalhes perdura até hoje e acredito que isso vai durar um bom tempo. Pelo que vejo de relatos de fãs de My Mad pelo mundo a fora, esse sentimento é compartilhado. My Mad Fat Diary se encontra disponível completa e legendada em português no Youtube. Por Daniel Maia
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Recentemente, uma playlist criada no Spotify, fruto do bom-humor e vivacidade do usuário brasileiro, despontou nas redes e merece aqui o devido destaque. “Músicas mais longas do que o discurso do Bolsonaro em Davos” lista 18 canções que, como explica o título, duram mais tempo que o discurso de nosso ilustríssimo presidente no Fórum Econômico Mundial deste ano. Dentre as mais famosas composições como Negro Drama (Racionais MC’s), Faroeste Caboclo (Legião Urbana) e Construção (Chico Buarque) é, na verdade, a nem-tão-conhecida segunda canção dessa lista que procuro deter minha atenção: o interessantíssimo forróck de O Encontro de Lampião com Eike Batista.
A música em questão é de autoria da banda El Efecto que, misturando literatura de cordel com uma pitada de teoria marxista do valor-trabalho, imagina a história do encontro de um grande (até então) bilionário interessado nas terras da maior figura do cangaço nordestino. O grupo, que surgiu da cena carioca independente, é composto por Aline Gonçalves (flauta e clarinete), Bruno Danton (voz, violão e viola), Cristine Ariel (guitarra, cavaquinho e voz), Eduardo Baker / Pedro Lima (baixo), Gustavo Loureiro (bateria), Tomás Rosati (voz, cavaquinho e percussão), Tomás Tróia (guitarra e voz) e pode ser caracterizado, principalmente, tanto pelo engajamento político de suas letras como pelo ecletismo de seu som. Como eles mesmos descrevem, “As composições são mergulhos nas mais distintas tradições e gêneros musicais, revisitados a partir de uma perspectiva contemporânea”, e, ainda, “As letras propõem interpretações críticas das atitudes individuais e coletivas, movimentando-se entre a angústia e a esperança, o pessimismo da razão e o otimismo da luta. Não se trata de pensar a arte como um escape para as frustrações de uma vida resignada, mas sim de tomá-la como um estímulo, um ponto de partida para questionamentos e - por que não? - transformações concretas”. O mais recente projeto do El Efecto, o álbum “Memórias do Fogo”, dá continuidade e profundidade à proposta da banda. Lançado em 2018, a capa mostra a imagem de um prego “pregando” um martelo; já o título, por sua vez, é inspirado na obra de Eduardo Galeano, a trilogia “Memória do Fogo”, que traça um panorama histórico da América Latina na forma de um verdadeiro registro cultural do Sul. Assim, também, a música de abertura do álbum, a faixa “Café”, tem como como fonte de inspiração musical um ritmo latino-americano, o Joropo venezuelano/colombiano; além disso, ela trata de dissecar a questão colonial expondo as contradições que marcaram o (nem tão) passado de nossa região, sempre contrapondo duas realidades, aquela referente aos que se deliciam plenamente de “um café em Paris” e outra, daqueles que “no corpo carregam impressas as farpas, os prantos, os calos, as marcas das veias abertas”. Se “Café” muitas vezes recorre a passagens mais pesadas em termos de sonoridade para transportar o ouvinte às tensões sociais do período, por outro lado, “Chama Negra” se vale de um samba jazz mais suave - resultado de uma ponte entre a música afro-brasileira e a afro-peruana - que busca expressar no mais puro lirismo o que de fato é ser, o que é sentir-se mulher negra, na voz e composição de Rachel Barros com arranjo de Aline Gonçalves. Finalmente, “Carlos e Tereza” é uma releitura contemporânea dos caminhos percorridos pelo axé, swingueira e pagode baianos, transplantados em uma ode à memória de Carlos Marighella e Teresa de Benguela. “Memórias do Fogo” abarca ainda outras faixas sonoras extremamente interessantes e dignas de serem conferidas. O álbum é uma coleção riquíssima em termos de sincretismo entre estilos musicais contemporâneos e tradicionais; a experimentação musical permeia toda a obra e o ouvido atento certamente perceberá as múltiplas camadas melódicas de diferentes gêneros, acompanhado sempre de uma miríade de referências a cada verso que se segue. Nele, podemos encontrar detalhes das mais diversas áreas da cultura que nos remetem a, por exemplo, Chico Science, Rage Against The Machine, Slavoj Zizek, La Haine (O ódio), dentre outros, numa conformação entre conteúdo e forma incríveis. Por Giuliana Facciolli O Encontro de Lampião com Eike Batista: https://www.youtube.com/watch?v=2F-ZYs2NlYU Memórias do Fogo: https://www.youtube.com/watch?v=mI9vuhcaNoM Nunca entendi o apelo das distopias ou da ficção científica, um pouco por preconceito e um pouco por receio de que lê-las fosse abalar meu arduamente construído otimismo com relação ao futuro humano. Acho que foi no final do ano passado que assisti a um “Boletim do Fim do Mundo” (aqui caberia outro PET Indica. Os boletins são lives semanais que o Bruno Torturra, um dos fundadores do Mídia Ninja, faz no Youtube comentando assuntos relevantes da semana) em que a trilogia Maddadão (uma tradução engraçada à beça de Maddadam, ou Adão Louco) era recomendada entusiasticamente como uma grande ferramenta pra pensar nossa situação hoje. Quando trombei com o primeiro livro da série, Oryx e Crake, numa livraria, uma tarde qualquer, resolvi dar uma folheada e ver do que se tratava. Tendo sido escrito em 2003 por Margaret Atwood, autora do famoso O Conto da Aia, o livro parece em muitos momentos uma premonição assustadora de alguém que, do início do século XXI, observava os primórdios da revolução produzida pela popularização da internet e pela crescente capacidade científica e tecnológica de controle e manipulação da vida. O que me fisgou num primeiro momento foi o ritmo frenético e o estilo pragmático da narrativa. Atwood nos arremessa sem dó, já nas primeiras páginas, no universo desértico, solitário e bizarro de um homem que, logo percebemos, talvez seja o último ser humano da terra. Acompanhamos, então, a história de Jimmy, ou o Homem das Neves, como agora se apresenta, enquanto tenta sobreviver em um planeta superaquecido e repleto de criaturas geneticamente modificadas, vagarosamente rememorando o desenrolar dos acontecimentos desde sua infância até a súbita catástrofe que o levou até ali. Não que a vida fosse muito melhor pré-catástrofe, embora o nosso protagonista acredite que sim e se lembre daquele passado com tristeza e nostalgia. Seus pais, cientistas/engenheiros genéticos trabalhando para uma grande corporação de biotecnologia, proporcionam a Jimmy uma infância protegida do caos que se instaurara do lado de fora dos grandes complexos condominiais onde vivem, com um certo luxo, os empregados das grandes empresas. Fora alguns elementos peculiares, como o fato de que quase toda a comida que comem é ultra processada e feita de soja e o estado maníaco-depressivo de sua mãe, imersa em conflitos ético-morais gerados por sua participação nos projetos sombrios da corporação, a infância de Jimmy é relativamente normal. E é por esse mundo que o Homem das Neves é assombrado agora, em sua luta solitária pela sobrevivência, bem como por um amor perdido - a misteriosa Oryx - e pelo ódio do seu melhor amigo, Crake, que, logo fica claro, foi um dos grandes responsáveis pela tragédia da vida de Jimmy. Com o desafio de não dar spoilers, o que posso dizer sobre o livro é que, ao fim e ao cabo, o que ele nos oferece é uma pergunta: o que é valioso sobre a humanidade, apesar de tudo? O mundo pré-cataclisma em que Jimmy cresceu é uma versão angustiantemente piorada do nosso presente: desigualdade vertiginosa, democracia arruinada, colapso ambiental, internet fora de controle, Estado policial, indústria dos genes, lógica de condomínios, fundamentalismo religioso..., mas, ainda assim, um mundo humano. Um mundo em que há arte, linguagem, afeto, relações, famílias, conflitos, fé, dúvidas. Atwood não poupa crueza no retrato que pinta da nossa espécie, mas como mesmo ela parece acreditar depois desse exercício, talvez ainda haja algo na nossa confusão capaz de nos redimir. Por Renata Leal |
PET IndicaSemanalmente, indicamos filmes, músicas, livros, eventos culturais da cidade, entre outros, acompanhado de um texto autoral que explore o cunho sociológico, antropológico e/ou político da indicação. Histórico
August 2021
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