A obra Por um feminismo afro-latino-americano, lançada em 2020 pela Zahar, reúne uma coletânea de textos escritos pela formidável intelectual, pensadora e professora Lélia Gonzalez. Organizada por Flavia Rios e Márcia Lima, ambas sociólogas e professoras, respectivamente, da Universidade Federal Fluminense (UFF) e da Universidade de São Paulo (USP), o livro nos brinda com a oportunidade de poder ler, de uma só vez e com excepcional qualidade, ao amplo (e de tão difícil acesso) conjunto de reflexões críticas formuladas por Gonzalez ao longo dos anos 1970 e 1980.
Para quem não a conhece, Lélia Gonzalez (1935-1994), mineira nascida em família pobre e que se mudou, ainda na infância, para (à época) a capital federal Rio de Janeiro, não pode ser encaixada numa classificação disciplinar. Graduou-se em história e filosofia, mestra em comunicação social, empreendeu estudos de doutorado na área da antropologia, além de ter buscado formação complementar na psicanálise. Em suma, uma mulher e intelectual tão multifacetada quanto rigorosa em suas interpretações. Sua rica vida e percurso intelectual podem ser encontrados na excelente biografia escrita por Alex Ratts e Flavia Rios (2010). O livro que aqui indico foi dividido pelas organizadoras em três momentos principais: ensaios, intervenções e diálogos. O primeiro traz os artigos e outros textos que ela publicou numa diversidade de periódicos ao longo de sua carreira acadêmica. Permite, assim, uma amostra das questões que a motivaram: os tão profundos quanto disfarçados processos de discriminação racial que constituem a sociedade brasileira; a combinação das formas de dominação em termos de classe, raça e gênero, além de suas expressões e efeitos sobre o lugar da população negra, em geral, e das mulheres negras, em particular, no mercado de trabalho e outras esferas de atuação e participação social. As formas de protesto e mobilização aparecem, igualmente, como tema fundamental, permitindo um olhar privilegiado sobre as tensões que cercaram a organização de diversos setores progressistas no Brasil dos anos 1980, destacando-se as fundações do Partido dos Trabalhadores e do Movimento Negro Unificado. Na parte chamada intervenções, a leitora se depara com tomadas de posição as mais diversas, que tratam desde momentos particulares – porém de significado muito mais amplo – de embates no Brasil, passando pela homenagem e reconhecimento de figuras centrais da militância negra (em diversas facetas), como Luiz Gama, Abdias do Nascimento e Zezé Motta, até sua importante participação nos debates da Constituinte, com essa fala de Gonzalez sendo um texto inédito. Na seção de diálogos, a obra encerra com um conjunto de entrevistas, novamente publicadas nos mais diversos veículos da imprensa, mesclando depoimentos pessoais e sua arguta crítica social. Finalmente, tem-se ainda em apêndice um texto a propósito de Lacan, no qual é possível entrever a profundidade e intimidade da autora com a psicanálise, bem como fornecendo elementos para aprofundar sua relação com a leitura da questão racial no Brasil. Ao fim as organizadoras acrescentam uma cronologia, uma breve biografia e uma série de nota, nas quais elucidam e contextualizam, primorosamente, alguns dos ensaios e das reflexões dela em relação ao momento ou evento histórico que motivaram aquele texto. Desse modo, fica aqui a enfática recomendação para a leitura de toda a obra: a escrita de Lélia Gonzalez é bastante agradável, ainda que em muitos momentos também se mostre doída e provocadora, haja vista as tensões que entrecortam sua narrativa e suas análises. Ao mesmo tempo, deve-se evitar confundir isso com a ideia de que ela não nos apresente questões de enorme complexidade e que, é fundamental frisar, continuam – muitas delas, infelizmente – atualíssimas, mesmo mais de três décadas depois de terem sido postas. As ciências sociais, em particular, e o público brasileiro, em geral, ganham muito com essa publicação. Referências GONZALEZ, Lélia. Por um feminismo afro-latino-americano. Orgs.: RIOS, Flavia e LIMA, Márcia. São Paulo: Zahar, 2020. RATTS, Alex e RIOS, Flavia. Lélia Gonzalez. São Paulo: Selo Negro, 2010.
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PET IndicaSemanalmente, indicamos filmes, músicas, livros, eventos culturais da cidade, entre outros, acompanhado de um texto autoral que explore o cunho sociológico, antropológico e/ou político da indicação. Histórico
August 2021
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